Livre-Arbítrio Revisitado – Robert E. Picirilli
Introdução
O tema do livre-arbítrio sempre foi uma das questões mais debatidas na história da teologia cristã. Desde os escritos de Agostinho contra Pelágio até os embates da Reforma Protestante, passando pelos desenvolvimentos do arminianismo e calvinismo, a pergunta permanece: o homem pode escolher livremente a Deus?
É nesse cenário que se insere o livro Livre-Arbítrio Revisitado: Uma Resposta Respeitosa a Lutero, Calvino e Edwards, de Robert E. Picirilli (Editora Palavra Fiel, 2019). O autor é conhecido por suas obras sobre arminianismo reformado e pela defesa do que chama de “libertarian free will” (livre-arbítrio libertário). Sua proposta é oferecer uma resposta respeitosa, mas firme, às objeções clássicas levantadas por três gigantes da teologia: Martinho Lutero, João Calvino e Jonathan Edwards.
A Estrutura da Obra
O livro é bem organizado e pode ser dividido em quatro grandes partes:
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Definição de livre-arbítrio: Picirilli estabelece que livre-arbítrio é a capacidade humana de escolher entre alternativas reais, desde que o indivíduo possua conhecimento suficiente para discernir essas opções. Ele rejeita tanto o determinismo naturalista quanto o compatibilismo calvinista, defendendo o chamado autodeterminismo.
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Diálogo com Lutero, Calvino e Edwards: O autor analisa A Escravidão da Vontade de Lutero, A Escravidão e a Libertação da Vontade de Calvino, e A Liberdade da Vontade de Edwards. Picirilli demonstra respeito por esses teólogos, mas argumenta que suas críticas ao livre-arbítrio partiram de uma reação legítima contra o orgulho humano, acabando por negar mais do que a Escritura autoriza.
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Questões centrais: Aqui, ele enfrenta os grandes dilemas teológicos: a relação entre presciência divina e liberdade humana; a realidade da depravação total; o papel da graça preveniente; e a soberania de Deus em relação à responsabilidade moral do homem. Picirilli sustenta que a soberania divina não é ameaçada pelo livre-arbítrio, mas confirmada por ele, pois Deus quis criar seres capazes de responder livremente ao Seu amor.
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Conclusão: O autor reafirma a importância da liberdade da vontade como condição para a responsabilidade humana. Para ele, negar o livre-arbítrio enfraquece a justiça divina e compromete o entendimento da relação entre Deus e a humanidade.
Pontos Positivos
O mérito da obra está em três aspectos principais:
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Clareza didática: Picirilli consegue apresentar conceitos complexos de forma acessível, o que faz do livro uma boa introdução ao debate.
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Tom respeitoso: Mesmo discordando de Lutero, Calvino e Edwards, o autor reconhece sua grandeza e não os trata com superficialidade.
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Ênfase pastoral: Mais do que uma disputa filosófica, o livro toca em implicações práticas: como pregamos o evangelho? Como entendemos a responsabilidade humana? Como preservamos a justiça de Deus?
Minha Crítica: O Problema do Termo “Livre-Arbítrio”
Embora reconheça o esforço do autor, considero que sua formulação sobre o livre-arbítrio gera mais confusão do que clareza. Isso porque, historicamente, Jacó Armínio — a quem Picirilli se diz herdeiro — não sustentava o livre-arbítrio no sentido natural ou libertário.
Armínio afirmava que, após a queda, a vontade humana está em cativeiro espiritual. O homem pode escolher entre coisas naturais (como comer, beber, trabalhar), mas é incapaz de escolher a Deus ou o bem espiritual por si mesmo. Ele escreveu:
“Neste estado, o livre-arbítrio do homem em relação ao verdadeiro bem não apenas é ferido, manco, enfraquecido, dobrado e diminuído, mas também aprisionado, destruído e perdido. E sua força não é nada além daquilo que é excitado pela graça divina.”
(Declaração de Sentimentos, 1608).
Portanto, quando Picirilli fala de livre-arbítrio como “capacidade constitucional” de escolher a Deus, corre o risco de se afastar da tradição arminiana clássica e se aproximar de uma linguagem semipelagiana, ainda que não seja essa sua intenção.
O Coração da Teologia Arminiana: Graça Preveniente
Para Armínio, o ponto central não é o livre-arbítrio humano, mas a graça preveniente de Deus. O homem está morto em delitos e pecados (Ef 2:1), e só pode ser despertado pelo Espírito Santo. Essa graça antecede toda decisão humana, tornando possível ao pecador ouvir, compreender e responder ao evangelho.
Dessa forma:
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Sem a graça, o homem está perdido, incapaz de escolher a Deus.
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Pela graça, o homem é capacitado a responder, mas ainda pode resistir (At 7:51).
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A salvação, portanto, é obra da graça do início ao fim, e não produto da autonomia humana.
Assim, a salvação é obra de Deus do início ao fim (Fp 1:6), mas sem anular a responsabilidade humana.
A Voz de Wesley
João Wesley, herdeiro espiritual de Armínio e principal difusor do metodismo, reforçou essa mesma compreensão. Ele rejeitou qualquer noção de livre-arbítrio natural, mas celebrou a graça preveniente:
“Não há homem que tenha naturalmente poder para escolher o bem e rejeitar o mal. Mas todo homem tem, pela graça de Deus, poder para escolher a vida ou a morte.”
(Sermão 85: Sobre a Obediência à Consciência).
Para Wesley, assim como para Armínio, a questão não é exaltar a liberdade humana, mas glorificar a graça de Deus que restaura a liberdade perdida no Éden.
Para Wesley, como para Armínio, não celebramos a liberdade humana, mas a livre graça de Deus que restaura a vontade (Tt 3:4-7).
Conclusão
Livre-Arbítrio Revisitado é uma obra de grande valor, especialmente para quem deseja compreender como arminianos dialogam com o legado reformado. Picirilli apresenta argumentos consistentes e faz uma defesa respeitosa da responsabilidade humana diante de Deus.
Contudo, ao colocar o livre-arbítrio como conceito central, corre o risco de desviar o foco do ponto mais importante da soteriologia arminiana: a primazia da graça divina. O verdadeiro legado de Armínio e Wesley não é a defesa de uma autonomia da vontade, mas a proclamação da graça preveniente, que ilumina, desperta e capacita o homem caído a crer em Cristo.
Assim, como pastor, entendo que a igreja precisa ser cautelosa ao lidar com o termo “livre-arbítrio”. O que deve ser exaltado não é a liberdade humana em si, mas a livre graça de Deus que alcança pecadores, restaura vontades e conduz à fé salvadora.
Não devemos exaltar a liberdade humana, mas a livre graça de Deus (Ef 2:8-9; 1Co 15:10), que salva, transforma e sustenta.
Resumo final: O livro de Picirilli contribui para o debate e oferece bons insights, mas, em fidelidade a Armínio e Wesley, prefiro falar menos de “livre-arbítrio” e mais da “graça preveniente”. É ela que sustenta toda a esperança do pecador e garante que, pela ação do Espírito Santo, o homem possa verdadeiramente responder ao chamado de Cristo.
Livre-Arbítrio Revisitado — Robert E. Picirilli, Editora Palavra Fiel, 2019